QUAL O REGIME DE CASAMENTO OBRIGATÓRIO PARA QUEM TEM 70 ANOS OU MAIS? E QUAL A REGRA PARA UNIÃO ESTÁVEL INICIADA QUANDO UM DOS COVIVENTES JÁ ERA SEPTUAGENÁRIO?
Talvez você não saiba, mas nossa legislação prevê que toda pessoa, maior de 70 anos, só pode se casar sob o regime da separação obrigatória de bens. Por outro lado, nossa Constituição Federal diz que a união estável tem os mesmos efeitos jurídicos do casamento.
Surge a pergunta: Podemos interpretar tal regra, à luz da própria Constituição Federal de 1988, como legítima proteção patrimonial das pessoas maiores de 70 anos de idade ou ofensa ao sagrado direito de manifestação de vontade e aos princípios da dignidade humana e igualdade?
A resposta não é simples! Precisamos entender alguns pontos básicos dessa discussão para construirmos uma opinião mais bem formada sobre o assunto.
Quanto à equiparação entre o casamento e a união estável, diz o artigo 226, § 3º, da Constituição Federal, que:
“Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. ”
Ou seja, hoje não resta a menor dúvida de que nossa Constituição Federal garante os mesmos efeitos jurídicos para quem casou ou estabeleceu uma união estável, incluindo a regra geral do regime de bens entre cônjuges.
Já o artigo 1.641, inciso II, do Código Civil de 2002, prevê que o regime de separação de bens deve ser aplicado aos casamentos dos maiores de 70 anos: “Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: (...) II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos; (Redação dada pela Lei nº 12.344, de 2010)”
Ora, se a lei civil determina que pessoas maiores de 70 anos devem se casar sob o regime de separação obrigatória de bens e, por outro lado, a própria Constituição Federal prevê tratamento jurídico semelhante entre união estável e o matrimônio, entende-se que: Tanto no casamento como na união estável, quando presentes pessoas maiores de setenta anos desde o início da relação, será obrigatório aplicar o regime de separação de bens nestas relações.
Ocorre que o direito é uma ciência que abre espaço para diversas discussões, sendo o presente caso uma das daquelas típicas matérias que ensejam a chamada “repercussão geral” pela importância e reflexo na vida dos cidadãos.
Em razão dos aspectos acima referidos e importância de unificar entendimento a respeito da matéria, o Supremo Tribunal Federal vai decidir se é constitucional o regime da separação obrigatória de bens no casamento de pessoas maiores de 70 anos e a aplicação dessa regra às uniões estáveis.
A matéria é objeto do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1309642, que teve a repercussão geral reconhecida pelo Plenário - Tema 1.236, com o objetivo de uniformizar a interpretação constitucional e evitar que o Supremo decida vários casos semelhantes com a mesma questão constitucional. O Supremo Tribunal Federal vai decidir se é constitucional o regime da separação obrigatória de bens no casamento de pessoas maiores de 70 anos e a aplicação dessa regra às uniões estáveis
Com a aplicação da repercussão geral é possível padronizar os processos no âmbito do STF e dos demais órgãos que compõem o Poder Judiciário. Por isso a importância do julgamento do agravo acima referido, pois essa decisão irá pacificar o entendimento a respeito da constitucionalidade do art. 1641, do Código Civil, que impôs o regime obrigatório de separação de bens para quem casa ou estabelece união estável quando atinge 70 anos ou mais.
Conforme consta no site do STF - (https://portal.stf.jus.br/noticias)
“A ação de origem diz respeito a um inventário em que se discute o regime de bens a ser aplicado a uma união estável iniciada quando um dos cônjuges já tinha mais de 70 anos. O juízo de primeira instância considerou aplicável o regime geral da comunhão parcial de bens e reconheceu o direito da companheira de participar da sucessão hereditária com os filhos do falecido, aplicando tese fixada pelo Supremo de que é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros (RE 646721).
O magistrado declarou, para o caso concreto, a inconstitucionalidade do artigo 1.641, inciso II, do Código Civil, que estabelece que o regime de separação de bens deve ser aplicado aos casamentos e às uniões estáveis de maiores de 70 anos, sob o argumento de que a previsão fere os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade. De acordo com a decisão, a pessoa com 70 anos ou mais é plenamente capaz para o exercício de todos os atos da vida civil e para a livre disposição de seus bens.
Contudo, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) reformou a decisão, aplicando à união estável o regime da separação de bens, conforme o artigo 1.641. Para o TJ, a intenção da lei é proteger a pessoa idosa e seus herdeiros necessários de casamentos realizados por interesses econômico-patrimoniais.
No STF, a companheira pretende que seja reconhecida a inconstitucionalidade do dispositivo do Código Civil e aplicada à sua união estável o regime geral da comunhão parcial de bens.
Ao se manifestar pela repercussão geral do tema, o ministro Luís Roberto Barroso ressaltou a relevância da matéria. Do ponto de vista social, a definição do regime de bens produz impactos diretos na organização da vida da sociedade brasileira. Sob o aspecto jurídico, tem relação com a interpretação e o alcance de normas constitucionais que asseguram especial proteção a pessoas idosas. E, da ótica econômica, a tese a ser fixada afetará diretamente os regimes patrimonial e sucessório de maiores de 70 anos. ”
Enquanto é aguardada a decisão do STF a respeito da constitucionalidade do art. 1641, II, do Código Civil, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), especializada em direito privado, aprovou recentemente uma nova súmula, a 655, nos seguintes termos: “Súmula n. 655: Aplica-se a união estável contraída por septuagenário o regime da separação obrigatória de bens, comunicando-se os adquiridos na constância, quando comprovado o esforço comum.”
Diante do entendimento do STJ, quanto à aplicação do regime da separação obrigatória de bens para quem estabelece uma união estável aos 70 anos ou mais, o qual equipara ao matrimônio e suas regras contidas no art. 1641 do Código Civil, cabe agora aguardar o julgamento do STF quanto à sua (in)constitucionalidade. Apenas depois do julgamento do Recurso Extraordinário - RE 646721, teremos condições de constatar se a súmula n. 655/STJ estará em consonância com o que for decidido pelo Supremo Tribunal Federal.
Vale destacar o excelente livro “Os Efeitos Patrimoniais da União Estável na Terceira Idade e a (In)constitucionalidade da imposição legal do regime de separação obrigatória de bens previsto no Código Civil Brasileiro”, de autoria dos colegas advogados Régis Santiago de Carvalho e Roberto Cunha, os quais defendem uma possível inconstitucionalidade do art. 1.641, inciso II do Código Civil, por afronta a Constituição Federal.
Cabe, por fim, refletir sobre o porquê dessa “proteção” jurídica à pessoa idosa que decide, aos 70 anos ou mais, casar ou iniciar uma união estável. Será que se justifica essa proteção que restringe a manifestação de vontade da pessoa idosa que pretende ter um novo relacionamento?
Nos parece que a idade não determina que uma pessoa, necessariamente, torna-se imune ou vulnerável ao chamado “golpe do baú” ou ação de alguém de má-fé que queira usar o caminho do relacionamento pessoal para se alcançar vantagens financeiras. Isso acontece em qualquer idade e podemos até considerar que com maior incidência na fase mais jovem da vida. Ocorre que as pessoas idosas, pela ordem natural das coisas, geralmente têm maiores chances de acumular patrimônio, tornando-se alvo preferido não só de golpistas como de “herdeiros de plantão” que se enxergam titulares de “direitos” sobre aquilo que não é de sua propriedade.
Daí surgem as discussões familiares e dificuldades de lidar com a matéria pela sua complexidade, pois nem sempre estamos certo de quem realmente está sendo protegido com leis que restringem o exercício do pleno direito de dispor dos seus próprios bens.
É certo que a pessoa idosa pode lançar mão de testamentos que assegurem seu desejo de beneficiar alguém após sua morte, mas também é certo que a sua manifestação de vontade deve ser resguardada como a mais legítima expressão de dignidade e exercício de cidadania. Retirar da pessoa idosa o poder de decidir sobre qual o regime de bens irá reger um novo relacionamento não nos parece o melhor caminho!
Em breve o Brasil alcançará a marca de 25% da sua população a ser constituída de pessoas com 60 anos ou mais! É essencial que a manifestação de vontade das pessoas idosas seja respeitada e observada, até mesmo para preservação da importância e respeito desses cidadãos!
A curatela e tomada de decisão apoiada são institutos jurídicos com os quais as pessoas podem contar em casos extraordinários, onde hajam inquestionáveis situações de necessária intervenção para proteção da pessoa idosa que não consegue mais expressar a sua vontade ou atenta contra sua própria segurança, agindo de forma pródiga e inconsequente. Para isso existem medidas judiciais com necessárias avaliações profissionais, acompanhamento do Ministério Público e uma decisão judicial fundamentada.
O Estatuto da Pessoa Idosa traz como um dos principais direitos fundamentais o Direito a Liberdade, ao Respeito e à Dignidade – Título II – Capítulo II - Dos Direitos Fundamentais. A imposição do regime de separação de bens invade a autonomia da pessoa idosa, agride o direito à manifestação de vontade, igualdade e dignidade.
Se o interesse da lei era proteger a pessoa idosa, parece que esqueceu de garantir outros direitos ainda mais importantes e que foram desconsiderados, configurando verdadeiro preconceito em relação às pessoas mais experientes e que devem, pelo tempo de vida, ter ainda mais condição de avaliar o melhor regime de bens em relação a um novo relacionamento a ser estabelecido.
Entendemos, portanto, que é inconstitucional a norma contida no art. 1641, II, do Código Civil – 2002. Inaceitável impor um regime de separação de bens àqueles que decidem estabelecer um novo matrimônio após atingirem 70 anos, o que é injustificável e fruto de um preconceito que apenas fere princípios como o da própria dignidade da pessoa humana. Tal norma também discrimina as pessoas em razão da idade, tratando-as como incapazes de defenderem seus próprios interesses em razão apenas da idade, em total desrespeito às regras básicas do Estatuto da Pessoa Idosa que busca assegurar exatamente o contrário, ou seja, o envelhecimento ativo, autônomo e sem qualquer preconceito.
Diz o art. 4º do Estatuto da Pessoa Idosa, Lei 10.741/2003:
“Art. 4º. Nenhum idoso será objeto de qualquer tipo de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão, e todo atentado aos seus direitos, por ação ou omissão, será punido na forma da lei.
§ 1º É dever de todos prevenir a ameaça ou a violação aos direitos do idoso”.
Ainda que a intenção possa parecer boa, nada justifica, em nome da “proteção da pessoa idosa”, impor-lhe regras restritivas de escolha para que sejam resguardados de si o seu próprio patrimônio e direitos de futuros herdeiros, ainda mais com base em suposta vulnerabilidade presumida tão somente pelo fato de se ter 70 anos ou mais! Ora, o critério de idade, se levado em consideração isoladamente, irá impor verdadeiro preconceito e limitação da tão importante liberdade de manifestação da vontade, ligada diretamente aos princípios básicos dos direitos humanos.
Mauro Moreira de Oliveira Freitas
Advogado, presidente da Comissão Defesa do Direito da Pessoa Idosa – OABDF - especializado em direito da Pessoa Idosa.
Conselheiro e Vice-Presidente do Conselho Nacional da Pessoa Idosa
Conselheiro junto ao Conselho da Pessoa Idosa do Distrito Federal.
Presidente da ABRACS – Associação Brasileira do Cidadão Sênior
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